Notícias

Artigo: O que é dignidade humana?

10 de maio de 2018

A regra legal da igualdade formal entre os indivíduos e o respeito a dignidade humana tem validade muito distinta entre as diversas sociedades. Por que isto acontece? Como é construído, na vida concreta e cotidiana, o valor diferencial das pessoas?

A visão ainda dominante no Brasil defende que são as relações pessoais com poderosos que permitiria subordinar, na pratica, o mandamento legal. Este seria o “jeitinho brasileiro” popularizado pelo antropólogo conservador Roberto da Matta e repetido tanto em círculos acadêmicos – como na recente palestra “vira lata” do ministro Barroso na Inglaterra – quanto nos botecos das esquinas do Brasil.

Tudo funciona como se existisse algum lugar no mundo onde o acesso a relações pessoais vantajosas não decidisse o destino individual das pessoas e que isto fosse uma “jabuticaba”, a qual só existe no Brasil.

Nunca é dito, por exemplo, que o acesso a pessoas importantes tem como pressuposto a incorporação anterior de capital econômico ou cultural. Ou alguém conhece alguma pessoa que tenha contatos importantes sem dinheiro ou conhecimento? Isso mostra cabalmente que o capital de relações pessoais é dependente do capital econômico e do capital cultural e não o contrario como diz a “teoria” do jeitinho.

Na verdade, no Brasil como em qualquer outro lugar onde o capitalismo é estrutura dominante, o valor relativo dos indivíduos – e das classes sociais que condicionam o ponto de partida individual – é decidido pelo acesso diferencial a capital econômico e cultural.

Como a propriedade econômica é muito concentrada a luta social de 95% da sociedade é por capital cultural em suas diversas formas. A incorporação de “conhecimento” implica um dado simbólico que explica por que as relações entre as classes não podem ser reduzidas ao dado econômico.

É que o conhecimento é a versão secularizada do “espírito” em oposição ao “corpo” animalizado como a matriz de todas as hierarquias sociais existentes entre as classes sociais – assim como dos “gêneros”, “raças”, etc. Assim, como tudo que ligamos a noção de superior, nobre e virtuoso se liga ao “espírito”, como lugar do conhecimento e da sensibilidade, tudo que achamos inferior e desprezível está ligado ao corpo como lugar dos afetos incontroláveis e da animalidade.

A união de conhecimento valorizado e prestigioso e uma suposta maior “sensibilidade” no consumo e na estilização da vida constrói tanto uma solidariedade interna entre as classes superiores quanto a base de seu desprezo e preconceito contra as classes populares. Entre as classes populares a incorporação de conhecimento técnico e útil para o mercado de trabalho competitivo, separa a classe trabalhadora, ainda que crescentemente precarizada, do que chamo provocativamente de “ralé brasileira”.

Esta classe super-explorada e desprezada é condenada, pelo abandono e desprezo secular de toda a sociedade, a vender sua “energia muscular” – como as empregadas domésticas e os trabalhadores sem qualificação – como um animal ou um escravo. Como o acesso a conhecimento útil exige pré-condições afetivas, emocionais e morais, além de pré-condições econômicas, só uma sociedade que generaliza o acesso a estas pré-condições a todas as classes pode garantir um patamar mínimo de respeito à dignidade de todos.

Paga-se de bom grado um eletricista que resolve um problema na fiação da casa, mas paga-se com menos boa vontade um guardador de carros em uma rua escura e vazia. Sabe-se que se paga, muitas vezes, para proteger o carro do próprio guardador.

O guardador de carro não possui o mesmo respeito já que não realiza trabalho útil, cujo pressuposto é conhecimento útil incorporado. Sente-se em relação a ele ou o desprezo do insensível, ou a pena de quem tem bom coração. Desprezo e pena são duas faces de uma mesma moeda.

Só sentimos pena ou desprezo em relação a quem julgamos inferior. Isso comprova que as avaliações e as hierarquias sociais se impõem a todos os indivíduos sejam eles canalhas ou pessoas de bom coração. As sociedades mais igualitárias e “dignas” são – não por acaso – aquelas que generalizaram, para todas as classes sociais, o acesso a educação de qualidade.

Entre nós a continuidade da escravidão sob a forma do sub-trabalho barato e humilhante se expressa no ódio elitista contra políticos como Brizola e Lula que focaram sua ação na boa educação para os pobres. É o que faz, hoje em dia, com grande sucesso, apesar da escassez de recursos, o governador do Maranhão Flávio Dino no seu Estado. Não existe vida perdida ou classes condenadas. Boa escola para todos é a verdadeira revolução brasileira.

Jessé Souza é sociólogo e professor universitário. Foto: Hugo Harada

COMENTÁRIO

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Categorias

Artigo
Ciência
COVID-19
Cultura
Direitos
Educação
Entrevista
Eventos
Geral
Mundo
Opinião
Política
Programa Extra-Classe
Publicações
Rádio Sinpro Minas
Saúde
Sinpro em Movimento
Trabalho

Regionais

Barbacena
Betim
Cataguases
Coronel Fabriciano
Divinópolis
Governador Valadares
Montes Claros
Paracatu
Patos de Minas
Poços de Caldas
Pouso Alegre
Sete Lagoas
Uberaba
Uberlândia
Varginha